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Lion - Uma jornada para casa. Artigo publicado no Jornal do CELG-Centro de Estudos Luis Guedes por F

A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Baseado numa história real, Lion é um belo filme sobre a trajetória de um menino indiano de 5 anos de idade que se perde de sua família. Tendo recebido algumas indicações ao Oscar, inclusive a de melhor filme, conta de maneira tocante a trajetória de Saroo que, perdendo-se do irmão, acaba vivendo nas ruas até ser adotado por uma família australiana. Ao sair de casa uma noite à procura de trabalho com o irmão mais velho, Saroo acaba embarcando em um trem e indo parar a milhares de quilômetros de sua cidade natal. Começa nesse momento a história de superação desse menino para sobreviver, física e psiquicamente, nas ruas de uma grande cidade. Vale mencionar o trabalho do jovem ator, que consegue tocar o expectador, transmitindo através de seu olhar e atitudes os sentimentos e dificuldades pelas quais ele passou.

Antes de se perder, Saroo morava com a mãe, a irmã e o irmão mais velho em uma condição de extrema pobreza financeira. Pobreza essa contrastada pela aparente riqueza afetiva com a mãe e, especialmente, com o irmão. O pai não aparece na história, com sua função ficando a cargo de Gudu, o irmão mais velho. A relação com esse irmão e a mãe parece criar para Saroo uma fonte de amparo e segurança interna da qual ele faz uso enquanto está perdido à procura da família.

Por um bom tempo o menino transita perdido pelas ruas de Calcutá até ser encaminhado a um orfanato. De lá, ele acaba indo para Tasmânia e é adotado por um casal sem filhos. Parece que, à medida que ele vai se distanciando de sua cidade natal, lacunas vão se estabelecendo em suas memórias, em suas representações internas, dificultando sua comunicação e identificação. Isso acaba explicitado na confusão de linguagem que ele faz em relação ao seu nome e ao de sua cidade natal.

A mãe adotiva também tinha passado, em sua infância, por uma situação traumática com seu pai. Isso parece a ter motivado, em uma tentativa de reparação na vida adulta, a adotar crianças órfãs. Parece que, apesar das tentativas, o traumático acaba retornando à vida desse menino de diversas maneiras. Até mesmo através da chegada de um irmão adotivo bastante doente. Após um breve relato sobre a vida de Saroo com essa nova família a história dá um salto de 20 anos. O filme nos mostra, mais uma vez, que lacunas ficaram sem serem preenchidas na história de Saroo. Nesse momento, Saroo novamente se afastará de outra família, dessa vez para estudar.

Vale ressaltar a cena em que Saroo está em um restaurante com seus pais preparando a despedida. A mãe mostra-se preocupada com a saída do filho de casa, mas ele trata a situação como se fosse algo corriqueiro, sem maiores efeitos. No entanto, ao ingressar na faculdade, ele entra em contato com colegas indianos e com uma situação afetivamente carregada que o faz lembrar do irmão. Nesse momento, ele consegue contar aos seus colegas e à namorada sobre sua história e inicia aí, para Saroo, uma jornada em busca de seu passado.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou

A vinda tem a regressão errada.

Já não sei de onde vim nem onde estou.

De o não saber, minha alma está parada.

Parece que toda a vivência traumática “aparentemente” esquecida volta com sua força total para tomar conta da vida e dos sonhos de Saroo. No caso de Saroo, a nova separação de uma família, o contato com pessoas e costumes de sua origem e a necessidade de busca de representação para lacunas em sua história fazem com que toda situação traumática aflore à procura de respostas, reconstruções e construções.

Saroo traça um plano para reencontrar sua família e suas origens. Após calcular, equivocadamente, a distância que havia se afastado de casa, começa uma procura através de mapas de seu país de origem.

Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar,

É tocante o desligamento que ele faz do restante de sua vida no momento em que ele está em busca do perdido. Isso é mostrado na relação com a namorada, que parece ser a força que o tenta puxar de volta à vida. Já esgotado pela procura, quase desistindo de seu plano, vem uma cena que pode nos fazer pensar. Já sem esperanças, procurando no mapa que havia montado, uma noite ele resolve ir além do perímetro traçado. A cena mostra Saroo indo adiante da linha tracejada que ele havia estabelecido como limite para sua procura. Nesse momento, podemos imaginar a linha como a barreira consciente/inconsciente. Indo mais além, na área desconhecida, na área “inconsciente” das origens procuradas, Saroo consegue encontrar sua resposta.

A partir desse momento, muda o clima do filme. Saroo parece se reencontrar, voltando a ser a pessoa que era antes do ressurgimento do traumático. Consegue se reaproximar de seus pais adotivos e explicar-lhes seu plano. Tenta também se aproximar do irmão adotivo e parte em uma viagem à procura de sua cidade e sua família.

O que Saroo encontra lá merece ser visto no filme. No entanto, a beleza de toda narrativa é o fato dela mostrar a necessidade da construção/reconstrução de uma história. O filme nos mostra que parece impossível se viver (e não somente sobreviver) com áreas de lacunas de representação. Em algum momento da vida esse vazio virá bater à porta demandando trabalho psíquico para o preenchimento dos buracos deixados pelo traumático.

O Trauma tem para cada indivíduo um significado particular, pois cada pessoa tem sua estrutura única, formada a partir de uma base biológica, uma história específica e onde a experiência traumática se insere em conexão com os objetos e relações objetais pré-existentes em seu mundo interno. Transpondo para o nosso trabalho, vivenciamos a possibilidade de acesso a conteúdos inconscientes dos pacientes, buscando um caminho para irmos em busca de uma possível ressignificação das vivências traumáticas, aguardando o tempo e o momento onde isso se torna possível. Diversas podem ser as maneiras de se atingir esse objetivo. Desde uma viagem à India, como no caso de Saroo, até uma viagem ao interior de nós mesmos em um consultório psicoterápico. Mesmo que não se consiga recuperar tudo, a viagem vale a pena pela beleza do caminho que percorremos ao nos reencontrar com nossa história.

Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.

(Poema de Fernando Pessoa - A criança que fui chora na estrada).

 
 
 

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